sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Yersinia



Baby
Quero ser sua peste
Bubônica
Escalar faminta seus nodos
Linfáticos
Mapear de negro
Sua pele pálida
Entre seus cabelos
Minhas pulgas rápidas
Defumar seus lábios
Em fumaça
Láctea
Empilhar os
Mortos
Como nossos
Filhos
Acarinhar os
Ratos
Feito bons
Meninos
E a máscara branca
Ave de
Rapina
O fetiche lícito
Sexual, explícito
Mergulhando em
Gozo e pus no seu
Cortiço

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

O Primeiro Beijo

Não era a primeira vez que ia ao bordel de dona Amélia. Motivos não faltavam para as eventuais visitas, desde as bebedeiras comemorativas à curiosidade de colegas que nunca tinham ido ali. Mas dessa vez era diferente. Dessa vez as portas com cortinas vemelhas surgiram quase que de repente, levadas por passos trôpegos. Não era a bebida que o tonteava nem os cigarros que avermelhavam os olhos. Essa era a primeira vez em que a "casa de meninas" (como a cafetina gostava de chamar) se mostrava um verdadeiro refúgio do resto do mundo. Do mundo e daquela vagabunda.

- Oi querido, quanto tempo!
- Amélia, me traga a puta mais feia que tem aí.
- Mas meu bem, você é da casa, se está sem grana fazemos fiado dessa vez. Não queres a Cíntia, a morena de sempre?
- Não discute comigo porra, eu quero a mais barata de todas. Pensa que não sei que vocês têm putas de dez reais? Essa espelunca não engana ninguém. E eu quero a suíte.
- Ok doçura, ela já sobe, respondeu a velha com um sorriso malicioso nos lábios.

Dona Amélia conhecia aquele tom de voz; lembrou da pinga rosa que mantinha atrás do balcão do bar. A garrafa sem rótulo há mais de quatro anos, situada aos pés de uma estátua de bode. Só enxergava a pinga perigosa quem estava há muito debruçado entre poças de cerveja velha e baba. Enxergava e pedia com aquela mesma voz.
Subiu as escadas, apressado, mastigando o cigarro apagado e esfregando as unhas no corrimão de madeira. Vagabunda. Ela ia ver o que era bom. Ia sentir na pele ser trocada por quem não merece. Ele ia foder uma boceta feia e barata pensando nela. Iria possuir um corpo que se assemelhasse à sua alma. Sim, e voltaria pra casa sem tomar banho, com cheiro de bordel. E decerto comeria aquela bunda perfeita raivosamente depois de ter explorado os buracos mais sebosos da cidade.

Não se passaram dez minutos e entrou a puta. Gorda, claro. Com um chiclete nauseabundo perambulando pelo que restava de dentes. Espremia-se num vestidinho listrado, enquanto as pernas grossas e venosas equilibravam-se perigosamente em cima das sandálias. Cabelo vermelho sujo com raízes negras a mostra, bigode, batom borrado decerto por um boquete de três reais ocorrido há muito pouco tempo. E as unhas roídas nos cantos com seu sangue coagulado, e a petulante assimetria de seus peitos. Sorriu. Sorriram. O cheiro, uma mistura de água de colônia com roupas secas à sombra. Inalou raivosamente. Ele dava voltas ao seu redor, felino, com uma curiosidade crescente, completamente nova. Nunca havia tido esse grau de intimidade com nenhuma mulher tão feia. Na verdade, com mulher alguma. Suas transas sempre foram mediadas por camadas grossas de cosméticos, drogas e receio. Esses cheiros e texturas explícitos formavam uma miríade desconhecida, desdobrando-se diante de seus olhos.

A puta também nunca tinha sido observada com tanto afinco. Estranhou alguém chamá-la a este quarto, ela que desde menina sempre trabalhou no beco ou no máximo na sala das vassouras do bordel. Agora os tapetes eram limpos, quase não havia barulho, podia olhar pro jovem a sua frente sem se preocupar com eventuais policiais. Estava confusa: ele tinha dinheiro, dava pra ver pelas unhas e dentes, pelo cabelo liso comprido e bem tratado, pela altura de criança que comeu bem na infância. Até as sardas mostravam suas origens nobres. Ficou com medo de ser o caso que suas colegas comentavam, do tarado que espancava mulheres. Justo ela, que nunca temera essas violências, afinal o beco possuía barulho e eventuais rondas policiais por ali. Ela que, como todas as putas realmente feias sabia que toda perversão possui algum padrão de beleza repetido, e que na realidade o que varia são apenas ambientes e roupas. Mas as frases sussurradas não paravam de passar em sua cabeça: "cinco costelas quebradas" , "perdeu os dentes da frente", "subornou a velha pra ela não dar queixa". Enquanto isso ele continuava ali rondando, se aproximando dela, como que apenas escolhendo o ponto mais macio pra bater. Ela encolheu-se lentamente, protegendo por instinto os órgãos vitais, e começou a tremer.

Ele estava a apenas alguns centímetros, analisando os restos de esmalte preto misturado ao sangue do canto das unhas, quando reparou em suas mãos embranquecendo, com ligeiros tremores no dedo mindinho espalhando-se para os outros. Com medo da puta estar doente, olhou com seus olhos verdes os vesgos olhos dela. E por trás do rímel de dois reais, por trás dos cantos remelentos de lápis de olho derretido, lá no fundo deles gritava aquela palavra. Temia tanto que fosse real. Sempre lhe perseguiu o pavor de que as sílabas pronunciadas dislexicamente pelas pupilas desencontradas se pronunciassem dessa forma, olhos nos olhos. Fugira sempre dela, percebia agora, da primeira letra redonda, meio fanha e açucarada até a última, imponente e forte. E logo nessa circunstância, logo com esta puta tão feia, logo agora escutou e digeriu, desvirginado letra por letra: M-U-L-H-E-R. Encararam-se por muito tempo. Ela com terror -"cinco costelas"-, ele com a curiosidade transformada em fascínio. Ela, representante extrema de toda uma horda até então desconhecida. Ela, matriarca caricata de uma geração feminina que sempre esteve silenciosamente ali, com pêlos, menstruação, com rugas e gorduras. Tão reais.

Já ia começar a gritar quando ele avançou em sua boca, sentindo seu hálito acre e o roçar do bigode grosso em seu rosto. Percebeu aquele grande corpo amolecer em seus braços, entregue ao primeiro beijo que recebia em anos. Jogou-a na cama, espalhando-se sobre ela, sentindo o abrigo de seus braços enormes envolvendo seu corpo delgado. E entre litros de suor sincero gozaram juntos três vezes.