segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Sobre o espetáculo de dança "Carta de amor a um inimigo" [Cena11 cia de dança]

       O espetáculo começa com luzes que aumentam gradativamente, acompanhadas de sons desconfortáveis e incompreensíveis, que também aumentam de volume. Demoramos a ver qualquer figura humana, até que, lentamente, os dançarinos entram no palco, dão alguns passos e congelam. É estranho, os dançarinos estão parados mas se movendo devagar, a ponto de seus braços e pernas mudarem de posição sem que eu perceba imediatamente. Estão parados mas se movendo ao mesmo tempo, parecem árvores, e (não) vê-los sair do lugar é agoniante e meio assustador. Demorei a notar que os movimentos se sincronizavam, e que depois de um tempo também as poses se repetiam nos seis corpos. Um quê de cemitério, talvez. Lembrei-me de uma peça do Beckett:


       Esperando Godot (fonte: http://berkshirereview.net/waiting-for-godot-samuel-beckett-theatre-royal-haymarket/)

         
           Em seguida, um dos dançarinos começa a correr enquanto uma das dançarinas se joga em seu caminho. Temo pela integridade física dela, que insiste em se jogar no meio da trajetória do que corre, expondo-se, quase implorando por algum contato. A peça é composta por quatro dançarinas e dois dançarinos. Ele corre, tropeça, pula e continua correndo. É esse o eixo principal em torno do qual gira o espetáculo, a meu ver. Uma dança tensa entre contatos extremos. Entre dependência e repulsa, entre continuidade e quebra. Uma dança  sem resolução nem harmonia fácil. 

              Quase não há música, o figurino é minimalista, o cenário se compõe com luzes, sombras e mais nada. Não há elementos em cena além dos corpos dos dançarinos. Não pude deixar de sentir aquela identificação assustadora com o que é bruto, interrompido e violento, assim como  muitos dos toques dos dançarinos, tanto com o chão como entre si. Às vezes há um vislumbre de diálogo, de complementação. Ás vezes, entre os passos da dança, os dançarinos  se abraçam em seus movimentos. Então, só então, fecham os olhos. Fiquei satisfeita por ter escolhido sentar na segunda fileira do teatro.

'Carta de Amor ao Inimigo' estreia nesta terça (28) (Foto: Cristiano Prim/Divulgação)

Foto: Cristiano Prim/Divulgação


            Os tímidos contatos, entretanto, são um nada perto dos desencontros retratados nos 70 minutos. E eles ecoam que nem o grito dos dançarinos: alto, amargurado, perfurante. Sendo a única vocalização na peça inteira, é inédita a interação entre a voz e os movimentos de quem dança. Pela primeira vez há complementação entre som e imagem, ao invés de interrupção. Até então eu estava assistindo a uma relação conturbada (mas muito bem executada) entre sonoplastia, luz e dança, demonstrada na maioria da duração da peça.

             Não há como não pensar nos desencontros e relações interpessoais (intrapessoais também, por que não), tão violentas, dependentes, por vezes feias. Elas nos cercam e, infelizmente, nos compõem tantas vezes. Às vezes elas são entre duas pessoas, às vezes são trios. Às vezes compõem uma engrenagem mambembe e quebradiça, que insiste em se erguer novamente, qual girafa de joelhos quebrados."Carta de amor ao inimigo" não é pra agradar sentidos, não é uma fruição estética descompromissada. Ele mexe em uma humanidade profunda, ritmada pelo som dos corpos dos dançarinos batendo no chão repetidas vezes. Uma carta que desconforta e dói em sua familiaridade. Feita para um inimigo, sem sê-lo.

Foto: divulgação