quinta-feira, 1 de maio de 2014

Safári

Penumbra na sala. Só um aparelho lança sua luz sobre as duas figuras. As duas  são parecidas: com a mesma postura, ambas fitam a televisão, em pé. Na rua, alguns cachorros latem e um carro estaciona ruidosamente. Na televisão explode um helicóptero, o fogo alternando com close-ups de uma moça loira e bem maquiada. O volume do filme está baixo. A iluminação frenética da cena contrasta com o ambiente semi-vazio em que as duas mulheres se encontram.

- Há muito tempo ensaio esta conversa na minha cabeça. Tenho algumas coisas para te falar, e espero que você compreenda. Na verdade, independente da tua resposta eu vou dizer o que preciso, e por enquanto eu só preciso que você me escute, certo? Pode sentar aqui, ó. 
a mãe senta na cadeira, boca semi aberta, mãos fechadas. Quando ela aperta as mãos é possível ouvir o barulho dos anéis batendo uns nos outros. Ela senta, numa lufada de perfume, e começa a chorar silenciosamente.
Então (diz, sentando-se e olhando para a ponta dos dedos da própria mão. Imaginava um cigarro queimando)... acho que nos últimos 10 anos nós duas estabelecemos um nível de respeito mútuo o suficiente para podermos ter essa conversa agora. O que ficou claro para mim é que somos muito diferentes. Sempre fomos, por uma série de motivos que não preciso esclarecer aqui. 
a mãe abre mais a boca, inspirando rápido pelas narinas. Lembra um animal selvagem, e a filha sabe que seu tempo está acabando. Os anéis tilintam, ameaçadoramente. A fricção deles lembra a da pata dos bichos cavando o solo antes de atacar.
- (falando mais rápido e estalando os dedos. começara a suar frio nos pés e na palma das mãos) Mãe, olha pra mim. Eu não vou continuar essa conversa se você ficar nervosa demais. Vamos manter a elegância, como você sempre me ensinou.
Ao ouvir a palavra 'elegância', a mãe ajeita-se na cadeira, coloca as mãos no colo e estica a coluna. Parece uma reação involuntária, automática. Se houvesse um espelho próximo ela o olharia por alguns instantes, só para checar.
-Mãe, eu não quero brigar. Mas eu tenho uma notícia que você não vai gostar. (respira profundamente)
A mãe levanta subitamente da cadeira, corre para o quarto e tranca a porta. A filha percebeu, então. Havia domado o rinoceronte. Também soube, entretanto, que esta seria uma dança de vários atos. 

Saiu da casa e foi fumar o cigarro que tinha escondido na bolsa.



quinta-feira, 27 de março de 2014

Repleta lama


Abrigo no peito a intimidade do vento
incauta, espelho o silêncio.
Esvaneço, olhando faminta
pro inútil suspiro
pro sorriso a ninguém.


Mastigo ávida o vazio,
Dentes comendo dentes
Som de caranguejos morrendo.
Minha língua desvia das pinças,
e voa torta nesse poema.


Vertigem doce
dias soltos
Salgados

E sóis.