quarta-feira, 6 de maio de 2015

Ambidestria



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Começa a mover os pulsos. O barulho das juntas estalando dá cadência ao ritual. Carinhosamente folheia o caderno, observando as diferenças de caligrafia nas páginas mais antigas. Com a caneta aninhada nos dedos, testa a força do pulso, variando de acordo com os gemidos do papel. Não há pressa. Ao escrever, o punho alisa as letras e encobre cada palavra bem no momento de seu parto. Saboreando as expressões, a mão esquerda goza lenta, respirando fundo, abocanhando palavra por palavra. É com segurança que as linhas de nanquim vestem o hoje com a roupagem do ontem. Quando escreve no caderno, sua mão direita se rende e engole, submissa, todas as metáforas mal elaboradas da canhota. Orgasmos profundos ocorrem no meio da tinta.  

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No teclado do computador os dedos pressionam rapidamente as teclas, marcando com um simulacro de tinta um simulacro de folha de papel. A tipografia, simétrica e racional, purga o que normalmente surfa nas fibras de celulose e endireita os garranchos, desnudando calculadamente as palavras. Ao observar o recorte preciso de suas irmãs, que pulam de um lado a outro movidas pelo cursor, as palavras, acuadas, se aliam com mais força umas às outras. Florescem e produzem significados bem elaborados, frases longas e coerentes. As duas mãos na frente da tela gozam alternadamente, várias vezes. Esta dança se prolonga pelas madrugadas, deixando o hoje dar mordidas cegas no amanhã. O gozo no teclado é bruto, exibicionista, bom de ler. 


Em ambos o estômago aperta, sentindo o beliscão constante do ato de escrever. Experiências distintas unidas pela presença do ponto final.



Um comentário:

Gugu Keller disse...

Escrever é despir-se. Reler, redescobrir-se.
GK