quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

A morte da velha dos gatos



Quando ela morreu os gatos circundaram o corpo, miando. Brincaram com os dedos inertes, puxando o prendedor de cabelo até soltar a juba de sua Dona. Depois de um tempo os quatro deitaram em seu peito e barriga e ali permaneceram durante um tempo, emprestando a ela um pouco de seu calor.  Depois disso, ficaram com fome, e miaram mais alto enquanto davam pequenas e amigáveis patadas em seu nariz, como faziam todos os dias pela manhã. Não obtendo resposta, procuraram pequenos insetos pela casa, e beberam bastante água.
Quando a água acabou, agitados e famintos, os gatos brigaram entre si. Os miados foram ficando mais grossos e graves, assemelhando-se ao barulho que gatas selvagens e abandonadas fazem quando no cio procuram companhia pelas ruas. Com sua selvageria lentamente acordada, os animais começaram a procurar um ponto de fuga. O apartamento era todo telado, e a única janela sem tela dava para o fosso de ventilação do prédio.Contemplando o vazio e a queda que levaria à certeira morte, os gatos miaram esganiçadamente durante horas. Sem nenhum pudor os animais anunciaram para todo o condomínio que algo sério havia acontecido. Isso chamou a atenção dos vizinhos, e em menos de 30h o corpo foi descoberto, velado e enterrado. Tirando a causa de sua morte, o cadáver dela estava intacto, ainda cheirando ao óleo perfumado que ela utilizara no banho pouco antes de morrer. Há quem diga que sua alma, preocupada com suas crias, rondou o cadáver até ter certeza de que cada uma teria novamente o que comer.
A primeira coisa que o policial que descobriu o corpo fez foi encher os potes de água, abrir o armário, pegar a ração e alimentar os bichanos. Ele também cuidava de três em sua casa, e acariciou levemente suas orelhas, os fazendo ronronar. Ouvindo o som macio e confortável, o que ainda restava dela neste plano sorriu, e a alma dela pôde ir descansar em paz.

Trate bem seus gatos, eles só comerão seu rosto quando você morrer caso não exista outra opção.

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Aracdemia / Exercício de Observação #7

O observo sentado, fumando entre as árvores. O olhar perdido encara a brasa, que esfuma e volta e meia desenha círculos no ar, regendo a música de suas sensações. O frio chegara atrasado na cidade. Tímido, tropeçando em dias de sol. Ele parece não notar, deixando o cachecol cinza jogado em cima da cadeira do café. Sua ponta arrasta no chão, juntando nela as folhas secas que parecem querer, como eu, estar perto de suas pernas. Às vezes ele dá um meio sorriso, como se quisesse conquistar, charmoso, o próprio cigarro. Que absurdo, um cigarro não se conquista! Pegar, acender fumar. Não existe poesia nesses gestos, nada além de carbono, veneno de rato, pólvora. E ainda assim, ele ri com os cantos da boca pro pequeno cilindro aceso, que ri de volta brilhando quente, ainda que morra com essa simpatia. Uma bela cena, iluminada pelo sol das 9h30 da manhã.

Ele tem o maxilar marcado, queixo forte e nariz aquilino. Olhos claros, cabelos loiros com ligeiros toques avermelhados nas têmporas e na barba. Pernas longas, mãos grandes de dedos compridos, braços definidos e costas largas. Pele limpa e sem defeitos. Beleza fácil, que dispensa um corte de cabelo elaborado, barba feita a navalha, roupas bem ajustadas. Ele seria bonito descabelado, com barba, sem barba, de moletom, de terno, uniforme ou nu. Começo a me irritar. São raros os indivíduos que ganham a grande loteria da genética, e a percepção de que não sou nem nunca serei um deles faz subir uma bile peçonhenta que queima minha garganta. Inevitavelmente desperta em mim o conhecido desejo sádico, dissimulado e violento. A vontade de tê-lo entre minhas pernas é sentida com a mesma intensidade da vontade de amarrar, cravar as unhas e ouvir seus gemidos de dor. O desejo de ser olhada com tesão compete com o desejo de ser olhada com medo, e agora quem acende um cigarro sou eu. Sem sorriso, sem poesia. Carbono, veneno de rato, pólvora e compulsão oral.

Ele termina seu flerte com a fumaça e começa a se levantar. Afasto da mente as imagens que clandestinamente molham minha calcinha, e concentro-me na sensação. Quando o desejo aparece, há que ser valorizado, ainda que com ele também surjam as malditas sinfonias de ódio e vergonha de mim mesma. Também deixo passar as automáticas frases de auto depreciação adornadas com a familiar ideação suicida, promessa de solução para todo esse turbilhão desagradável. Foco-me na sensação rara, sagrada e profana que há um bom tempo não me acometia e, aos poucos, o transformo em letra. Escrevo cirurgicamente, transfundindo seu sangue pro meu cérebro em solipsismo e confissões. Deixo os cortes escorrerem negros, não vermelhos, violentando as páginas do caderninho preto. Lentamente sua pele seca na ponta dos meus dedos, virando papel, até fazer um barulho liso e deserto enquanto passa asséptica por minhas mãos. Sangue, suor, porra, saliva. Tudo vira tinta. Os cabelos, linhas de caligrafia, guiam as metáforas ávidas. Sua carne rija eu trituro em um moedor feito de ideias, no qual ele se junta aos ossos de tantos outros. Ao final de tudo, ele será adubo para o próximo rapaz que enrolarei em minha solitária e viúva teia de significados.

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Quebrando




Existe um quebranto dolorido
No meu peito do teu peito distante
Nas longas madrugadas de domingo
Eu respiro incompleta e arfante

Existe um quebranto dolorido
Nas pernas que enlaçam o vazio
Chutando o nada das cobertas
E o lado da tua cama que está frio

Existe um quebranto dolorido
Esculpido bem no fundo da garganta
Subindo pelo meio das minhas pernas
Escorrendo frente a tanto desencanto

Existe um quebranto dolorido
Que tem por paradoxo o que crio
Movendo os afetos mais lascivos
Vomito sorrindo  a dor que cultivo

Meus dedos se movem, profanos
Taco fogo nas minhas horas de sono
E exercito um orgulho proibido
Nas palavras que transcendem o mundano

Existe um quebranto dolorido
Perene, pulsante, um vício
Quebrando revela  poesia
 E às vezes é até bonito.

terça-feira, 16 de junho de 2015

Ressaca





Pela falta de THC, álcool
Para a falta de álcool, omeprazol
Pela falta de açúcar, comida
Para a falta de libido, álcool
Pela falta de contato, facebook
Para a falta de sono, álcool
Pela falta de nicotina, açúcar
Para a falta de endorfina, THC
Pela falta de álcool, paracetamol
Para a falta de sexo, xvideos
Pela falta de riso, netflix
Para a  falta de suspiros, nicotina
Pela falta de informações, twitter
Para a falta de sono, cafeína
Pela falta de mim, você.


Desejo é falta, e o vazio tem fome.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Escala Maior

Seus olhos piscam ao contrário.
É deles que a fala escapa,
nascendo das pupilas dilatadas.
Com calma, mergulho nos dois poços.
São bem maiores que as íris azuis,
buracos engolindo oceanos.

A música é companhia, escape.
Ela aquieta o sol dentro do estômago.
Quanto mais alto do lado de fora,
mais silêncio do lado de dentro.

Abafa assim, entre tom e semitom
O barulho maldito, constante
do coração querendo escapar
do fluxo teimoso de sangue,
ansioso em lamber o piso.

O sorriso perfeito é distração.
O canto é regra e controle.
Domada, a voz obedece cada nota.

Mas eu consigo ver o tremor nos lábios.





quarta-feira, 6 de maio de 2015

Ambidestria



~
Começa a mover os pulsos. O barulho das juntas estalando dá cadência ao ritual. Carinhosamente folheia o caderno, observando as diferenças de caligrafia nas páginas mais antigas. Com a caneta aninhada nos dedos, testa a força do pulso, variando de acordo com os gemidos do papel. Não há pressa. Ao escrever, o punho alisa as letras e encobre cada palavra bem no momento de seu parto. Saboreando as expressões, a mão esquerda goza lenta, respirando fundo, abocanhando palavra por palavra. É com segurança que as linhas de nanquim vestem o hoje com a roupagem do ontem. Quando escreve no caderno, sua mão direita se rende e engole, submissa, todas as metáforas mal elaboradas da canhota. Orgasmos profundos ocorrem no meio da tinta.  

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No teclado do computador os dedos pressionam rapidamente as teclas, marcando com um simulacro de tinta um simulacro de folha de papel. A tipografia, simétrica e racional, purga o que normalmente surfa nas fibras de celulose e endireita os garranchos, desnudando calculadamente as palavras. Ao observar o recorte preciso de suas irmãs, que pulam de um lado a outro movidas pelo cursor, as palavras, acuadas, se aliam com mais força umas às outras. Florescem e produzem significados bem elaborados, frases longas e coerentes. As duas mãos na frente da tela gozam alternadamente, várias vezes. Esta dança se prolonga pelas madrugadas, deixando o hoje dar mordidas cegas no amanhã. O gozo no teclado é bruto, exibicionista, bom de ler. 


Em ambos o estômago aperta, sentindo o beliscão constante do ato de escrever. Experiências distintas unidas pela presença do ponto final.



quinta-feira, 1 de maio de 2014

Safári

Penumbra na sala. Só um aparelho lança sua luz sobre as duas figuras. As duas  são parecidas: com a mesma postura, ambas fitam a televisão, em pé. Na rua, alguns cachorros latem e um carro estaciona ruidosamente. Na televisão explode um helicóptero, o fogo alternando com close-ups de uma moça loira e bem maquiada. O volume do filme está baixo. A iluminação frenética da cena contrasta com o ambiente semi-vazio em que as duas mulheres se encontram.

- Há muito tempo ensaio esta conversa na minha cabeça. Tenho algumas coisas para te falar, e espero que você compreenda. Na verdade, independente da tua resposta eu vou dizer o que preciso, e por enquanto eu só preciso que você me escute, certo? Pode sentar aqui, ó. 
a mãe senta na cadeira, boca semi aberta, mãos fechadas. Quando ela aperta as mãos é possível ouvir o barulho dos anéis batendo uns nos outros. Ela senta, numa lufada de perfume, e começa a chorar silenciosamente.
Então (diz, sentando-se e olhando para a ponta dos dedos da própria mão. Imaginava um cigarro queimando)... acho que nos últimos 10 anos nós duas estabelecemos um nível de respeito mútuo o suficiente para podermos ter essa conversa agora. O que ficou claro para mim é que somos muito diferentes. Sempre fomos, por uma série de motivos que não preciso esclarecer aqui. 
a mãe abre mais a boca, inspirando rápido pelas narinas. Lembra um animal selvagem, e a filha sabe que seu tempo está acabando. Os anéis tilintam, ameaçadoramente. A fricção deles lembra a da pata dos bichos cavando o solo antes de atacar.
- (falando mais rápido e estalando os dedos. começara a suar frio nos pés e na palma das mãos) Mãe, olha pra mim. Eu não vou continuar essa conversa se você ficar nervosa demais. Vamos manter a elegância, como você sempre me ensinou.
Ao ouvir a palavra 'elegância', a mãe ajeita-se na cadeira, coloca as mãos no colo e estica a coluna. Parece uma reação involuntária, automática. Se houvesse um espelho próximo ela o olharia por alguns instantes, só para checar.
-Mãe, eu não quero brigar. Mas eu tenho uma notícia que você não vai gostar. (respira profundamente)
A mãe levanta subitamente da cadeira, corre para o quarto e tranca a porta. A filha percebeu, então. Havia domado o rinoceronte. Também soube, entretanto, que esta seria uma dança de vários atos. 

Saiu da casa e foi fumar o cigarro que tinha escondido na bolsa.