quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Retrato

Mostrou-se um pouco para ele. Despiu roupas, máscaras e o infinito verborrágico que a engatilhava no automático dos dias e sorrisos: lugares comuns para todos, menos ela. Acabavam por ser paradoxais e raros os seus lugares de conforto, a maneira espontânea de flutuar no mundo e cuspir ao vento o disparate da existência. A tensão era sono, o sorriso era rosnado e o ódio uma série de abraços. Em muito eram compostos do feio dia-a-dia do descaso planejado, que crescia em seus dentes uma camada amarela cada vez mais grossa.

Desta vez não sorriu, não citou ninguém. Mostrou um pouco a luta constante e a tensão cruel que permeava seus dias. Acreditava com isso despertar palavras, elaborações repletas de metáforas, o caminho da fuga percorrido tantas vezes. Olhava para baixo, encarando incrédula as próprias mãos. Como podiam pertencer a ela os dedos abrindo o pequeno livro e oferecendo em sacrifício sua frágil totalidade? Imaginava-o tecendo gestos belos e salvadores de um cristo esquecido, maldito e poderoso. Esperava, talvez, ver nele algum eco de si, algo específico que não sabia definir. Uma possível aura, escondida em seus cantos mais escuros e virginais. Várias partes dela desejavam famintas a defloração semi-consentida feita pelo outro.

Ele permaneceu quieto. Olhava para as letras trêmulas que ela desvendava, perpassando seus conceitos e ignorando o caderninho preto. Sem piedade, a via concreta. Talvez seus olhos gritassem, quem sabe fazendo nas íris escuras a transubstanciação proibida, pulsante nas partes esquálidas que ela insistia em esconder. Por um instante, quem sabe, teria a rara chance de se ver por completo nos olhos cansados dele. Mas não conseguiu escapar das próprias mãos. E ao terminar de roer a terceira unha, ela escolheu deixar para trás o mais fiel retrato que poderia ter. Sem ninguém ver, rosnou quieta, virou pro lado e dormiu.

Um comentário:

Ennila disse...

dormir... e' sempre um conforto, quando se consegue.