segunda-feira, 19 de abril de 2010

...Oi?

Você não vai escrever nada. Você não vai conseguir traduzir em palavras o abraço, os barulhos, o cheiro confuso das lembranças que achou terem morrido. Tentará escrever qualquer coisa que dissipe um pouco essa fome, o fôlego infinito por um momento que deveria ter eco em muitos mais, mas que precisa bastar-se. Você não vai conseguir, mas terá que escrever, na mesma madrugada em que tudo aconteceu, com a garganta ardida pela falta de cigarros, o peito vazio e feliz pelo extrair gradual das mágoas. Elas sairão, deixando aparecer e encherem-se de água salgada as pegadas fundas de saudade reprimida, improváveis tulipas vermelhas bem no meio do cerrado. E as possibilidades, em dúvida, perguntarão tímidas entre si o que aconteceu hoje, o que as reencarnou com um gesto. Elas não terão resposta, e você escreverá para tentar prever inutilmente em que elas desdobrarão, escreverá para tentar traçar caminhos virtuais , racionalizando o que não se pode racionalizar, e escreverá, sobretudo, para deslizar por si e conseguir visualizar um pouco de tudo o que aconteceu, olhando de esguelha para um projeto que começa a renascer.

domingo, 4 de abril de 2010

blá.

Novamente a fuga no meio delas, o velho e gasto tema da escrita, a música abençoando metáforas ruins. Acendeu outro cigarro, esmagando sem perceber o filtro entre os dentes; rangia os dentes há muito tempo, mas nunca como nas últimas semanas. O maxilar doía, e abrir a boca era um esforço enorme que não valia a pena. Deixara há algum tempo as palavras de lado, agonizantes e tristes como os sonhos no maldito verão que a sufocava todas as noites. As suas palavras, os pequenos fôlegos, sorrisos internos de dentes tortos, os pedaços de si que conseguia achar um pouco menos horrorosos que todo o resto. As abandonou assim, pretensiosa, querendo encarar a "realidade", no máximo auxiliada por bons autores canônicos. Não precisava de tudo aquilo, da gestação maldita, do isolamento e dos infinitos cigarros. Não precisava escrever, ofício inútil e sem perspectiva, não precisava fingir que sabia sua língua nativa, tudo o que precisava era ler, espreguiçar-se apática sobre um livro qualquer, encarnar escritores já reconhecidos, comer compulsivamente as palavras de outros sem nunca preocupar-se com as suas próprias. Não precisava abrir a boca e sentir a dor do maxilar ressonando com as outras dores, não precisava de palavras para além do utilitarismo preguiçoso do dia a dia. Como se ele bastasse, como se café maquiagem lenços detergente lençóis limpos pão de forma cigarros condicionador pasta de dente vestidos computador lugares-comuns elevador passagem de ônibus guarda chuva bibelôs aspirador de pó cumprimentos cortinas secador de cabelo pudessem a liberar da maldita gana, do suspiro interminável no peito , do desejo por elas, deusas e rainhas, construtoras de mundos mais coloridos, pulsantes. Queria voltar para as palavras para não ter que lidar com o mormaço, o nada corrosivo e áspero de um mundo sem poesia, sem arrebatamentos, sem sexo, um mundo acadêmico com cheiro de marfim e lustra móveis.