domingo, 4 de abril de 2010

blá.

Novamente a fuga no meio delas, o velho e gasto tema da escrita, a música abençoando metáforas ruins. Acendeu outro cigarro, esmagando sem perceber o filtro entre os dentes; rangia os dentes há muito tempo, mas nunca como nas últimas semanas. O maxilar doía, e abrir a boca era um esforço enorme que não valia a pena. Deixara há algum tempo as palavras de lado, agonizantes e tristes como os sonhos no maldito verão que a sufocava todas as noites. As suas palavras, os pequenos fôlegos, sorrisos internos de dentes tortos, os pedaços de si que conseguia achar um pouco menos horrorosos que todo o resto. As abandonou assim, pretensiosa, querendo encarar a "realidade", no máximo auxiliada por bons autores canônicos. Não precisava de tudo aquilo, da gestação maldita, do isolamento e dos infinitos cigarros. Não precisava escrever, ofício inútil e sem perspectiva, não precisava fingir que sabia sua língua nativa, tudo o que precisava era ler, espreguiçar-se apática sobre um livro qualquer, encarnar escritores já reconhecidos, comer compulsivamente as palavras de outros sem nunca preocupar-se com as suas próprias. Não precisava abrir a boca e sentir a dor do maxilar ressonando com as outras dores, não precisava de palavras para além do utilitarismo preguiçoso do dia a dia. Como se ele bastasse, como se café maquiagem lenços detergente lençóis limpos pão de forma cigarros condicionador pasta de dente vestidos computador lugares-comuns elevador passagem de ônibus guarda chuva bibelôs aspirador de pó cumprimentos cortinas secador de cabelo pudessem a liberar da maldita gana, do suspiro interminável no peito , do desejo por elas, deusas e rainhas, construtoras de mundos mais coloridos, pulsantes. Queria voltar para as palavras para não ter que lidar com o mormaço, o nada corrosivo e áspero de um mundo sem poesia, sem arrebatamentos, sem sexo, um mundo acadêmico com cheiro de marfim e lustra móveis.

4 comentários:

Nida Ollem disse...

porrax, muito bom.

Ennila disse...

"não precisava de palavras para além do utilitarismo preguiçoso do dia a dia": essa bela oracao exprime muito bem a minha constante sensacao de viver dias a fio trocando 'goods and services' com as pessoas ao meu redor. Ah, os momentos raros de trocas reais de sensacoes e impressoes. Os instantes social-privado da vida: o sexo, a comida, a boa conversa, o estar sentado sobre a grama ou sobre o banquinho em frente a biblioteca. As trocas de alma.

gil disse...

Um mundo sem arrebatamentos é aquela morte sem graça, com cheiro de lustra móveis.

E ele mata, mata mesmo. E é impressionante como sobrevivemos a gotas de entusiasmo e flashes poesia.

Tiago A. disse...

Seu texto me fez pensar o quanto seria fantástico ter uma matéria optativa de "Literatura e cotidiano" na universidade.