quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Em suspenso


Entre os ganchos na pele podia sentir escorrendo macio o sangue pelas costas. Enquanto estava ali pendurada, pensava no que a levara até ali. No que juntou-se lentamente, crescendo, afiando-se aos poucos, tornando o metal brilhante cada vez mais atraente, o seu toque frio numa carícia, a dor pulsante em cócega. Se perguntava quanto tempo duraria, o quanto poderia concentrar o peso num gancho só, a apenas um átimo de romper tecidos, espalhando sangue e pedacinhos de gordura pra todo lado. Lembrou de suas primeiras tentativas, quando ainda não sabia que a dor do rompimento era pouco maior que a da perfuração em si, o que resultou numa grande marca no pulso. Sentia as ondas de calor, principalmente nas escápulas, com os ganchos perto dos ossos. Puxava a corda silenciosamente, a tensão na pele aumentando aos poucos. O momento crucial e tão assustador toda vez : a possibilidade de voar ou de cair sangrando num universo de dor surda. Às muitas sensações se misturavam pensamentos perdidos que ela só conseguia alcançar a pelo menos quinze centímetros do chão. O cabelo roçava levemente na nuca, o suor frio escorrendo em seus ouvidos como lágrimas ao contrário. Era hora de começar a se mover. As pontas dos dedos primeiro, tímidas, seguidas dos pulsos girando devagar, restituindo a cor às mãos brancas salpicadas de vermelho. Não queria encontrar deus, ou o vazio, não queria provar a ela mesma que era possível, não queria os jorros de endorfina, só queria por alguns momentos deixar aquele piso odioso e comum.

Um comentário:

Ennila disse...

É como acordar debaixo de cobertas espessas num dia branco do chão ao céu. Mover a coberta é um ato pesaroso, a cada centímetro movido, sente-se o ar gélido que penetra os poros recém-descobertos na paisagem macia e aconchegante da cama. Deve-se ponderar muito. Não que o exterior seja um excitante mundo à espera de novas conquistas: é só um espaço branco e congelado.