Entre os ganchos na pele podia sentir escorrendo macio o sangue pelas costas. Enquanto estava ali pendurada, pensava no que a levara até ali. No que juntou-se lentamente, crescendo, afiando-se aos poucos, tornando o metal brilhante cada vez mais atraente, o seu toque frio numa carícia, a dor pulsante em cócega. Se perguntava quanto tempo duraria, o quanto poderia concentrar o peso num gancho só, a apenas um átimo de romper tecidos, espalhando sangue e pedacinhos de gordura pra todo lado. Lembrou de suas primeiras tentativas, quando ainda não sabia que a dor do rompimento era pouco maior que a da perfuração em si, o que resultou numa grande marca no pulso. Sentia as ondas de calor, principalmente nas escápulas, com os ganchos perto dos ossos. Puxava a corda silenciosamente, a tensão na pele aumentando aos poucos. O momento crucial e tão assustador toda vez : a possibilidade de voar ou de cair sangrando num universo de dor surda. Às muitas sensações se misturavam pensamentos perdidos que ela só conseguia alcançar a pelo menos quinze centímetros do chão. O cabelo roçava levemente na nuca, o suor frio escorrendo em seus ouvidos como lágrimas ao contrário. Era hora de começar a se mover. As pontas dos dedos primeiro, tímidas, seguidas dos pulsos girando devagar, restituindo a cor às mãos brancas salpicadas de vermelho. Não queria encontrar deus, ou o vazio, não queria provar a ela mesma que era possível, não queria os jorros de endorfina, só queria por alguns momentos deixar aquele piso odioso e comum.
quinta-feira, 31 de dezembro de 2009
quarta-feira, 16 de dezembro de 2009
Exercício de Observação #4
Para Tiago.
Encaro seu perfil por cima do beliche. Você morde o lábio inferior enquanto devora o livro, as últimas páginas convulsivas clamando o fim da história. Os olhos continuam metódicos, o pulso segurando o exemplar firme, a respiração presa nas últimas palavras. Eu já li esse livro, mas há tanto tempo que apenas a trama principal e algumas cenas ainda permanecem, formando a conhecida fotografia velha que é tanto do que já li. Não consegui identificar o desfecho no seu cenho ligeiramente franzido, na mão segurando a testa, quase um aceno involuntário a todos os personagens. Falhei e pergunto-me quanto daquelas palavras ainda me pertencem. Você não se satisfez, e relê novamente o último capítulo. Prolongando o gozo, talvez? Ou adiando o luto pelos personagens, pelo lento esquecimento das letras?
Agora a mão livre vai à boca às costas, aos cabelos, aceleram-se as pernas inquietas. O aceno vira orgasmo contido, vontade de explodir feliz com as novas informações e os dedos roídos. Seus olhos e boca encerram toda a sensualidade do mundo, no derradeiro suspiro de Um Jogador. Eu não sou nada além da observadora presença fantasmagórica, e percebo na sua postura corporal o envolvimento que nunca conseguirei de você. Eu corpo, versus livro, ideia. Eu de calcinha e camiseta velha contra toda a Rússia gelada de Dostoiévski. Era um caso pra despeito, ciúme infantil talvez. Sorrio lentamente enquanto digito, a minha deficiência frente às páginas duplamente cômica por remeter a outros livros. Terei sempre este mediador físico a me forçar a existir limitada, e seus olhos em mim jamais mergulharão tanto quanto nestas linhas negras. Quais serão as instâncias, entretanto, que um corpo tatua em outro?
Encaro seu perfil por cima do beliche. Você morde o lábio inferior enquanto devora o livro, as últimas páginas convulsivas clamando o fim da história. Os olhos continuam metódicos, o pulso segurando o exemplar firme, a respiração presa nas últimas palavras. Eu já li esse livro, mas há tanto tempo que apenas a trama principal e algumas cenas ainda permanecem, formando a conhecida fotografia velha que é tanto do que já li. Não consegui identificar o desfecho no seu cenho ligeiramente franzido, na mão segurando a testa, quase um aceno involuntário a todos os personagens. Falhei e pergunto-me quanto daquelas palavras ainda me pertencem. Você não se satisfez, e relê novamente o último capítulo. Prolongando o gozo, talvez? Ou adiando o luto pelos personagens, pelo lento esquecimento das letras?
Agora a mão livre vai à boca às costas, aos cabelos, aceleram-se as pernas inquietas. O aceno vira orgasmo contido, vontade de explodir feliz com as novas informações e os dedos roídos. Seus olhos e boca encerram toda a sensualidade do mundo, no derradeiro suspiro de Um Jogador. Eu não sou nada além da observadora presença fantasmagórica, e percebo na sua postura corporal o envolvimento que nunca conseguirei de você. Eu corpo, versus livro, ideia. Eu de calcinha e camiseta velha contra toda a Rússia gelada de Dostoiévski. Era um caso pra despeito, ciúme infantil talvez. Sorrio lentamente enquanto digito, a minha deficiência frente às páginas duplamente cômica por remeter a outros livros. Terei sempre este mediador físico a me forçar a existir limitada, e seus olhos em mim jamais mergulharão tanto quanto nestas linhas negras. Quais serão as instâncias, entretanto, que um corpo tatua em outro?
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