quarta-feira, 22 de agosto de 2007

A andorinha e a Cachoeira

Era uma vez uma cachoeira azul. Como toda cachoeira, ela possuía peixes coloridos, água cristalina e musgo nas pedras úmidas por sua constante névoa gelada. Era grandiosa a cachoeira, e todos os animais da floresta a admiravam e apreciavam a forma como ela sempre existiu ali. Era um elemento primordial, a cachoeira. Com seus litros infindos de água corrente, e aquele som constante que entra em nossas cabeças e parece se estabilizar com a corrente sanguínea, criando uma sensação de pertença interessante. Era eterna a cachoeira, e pra sempre suas águas correriam por ali, até o final dos tempos o sussurrar de águas em queda preencheria os ouvidos, mentes e corações dos moradores da floresta e de seus esparsos visitantes.

Todos amavam a cachoeira, menos uma pequena andorinha. Ela tinha inveja de suas águas tão fartas, e odiava saber que a cachoeira iria continuar a existir e ela , com suas penas ralas e bico quebradiço passaria, efêmera. Mesmo se destruísse a cachoeira, a marca que ela deixara nos corações e mentes dos bichos todos a eternizara há muito tempo. Era muito mais que uma simples cachoeira, era um símbolo para tudo o que existe de belo e correspondido no mundo. E a andorinha sabia disso, e invejava ,então, ainda mais a magnânima corrente de águas . Ela queria ter para onde correr como as águas dela. Ela queria ser segura e bela, para que pudesse criar alguma marca no coração e alma de quem quer que fosse.

A andorinha vivia perto da cachoeira, e mesmo a odiando usufruía suas águas e frescor. E odiava mais ainda a cachoeira por causa disso a andorinha, visto que ela era generosa até com ela, com toda a sua mesquinharia e inveja. Odiava saber que não fazia a mínima diferença para a cachoeira, ou para qualquer um dos bichos que fielmente idolatravam a rainha cristalina do vale.

Tanto se remoeu, tanto murmurou e alimentou a mágoa dentro de si que o coração da andorinha foi ficando cada vez mais duro e seco, e a vida da andorinha cada vez mais sem sentido.Todavia, a cachoeira dava-lhe sombra e água fresca, e andorinha não queria sair de perto dela por mais que a simples existência da cachoeira com seu fluxo constante a diminuísse e lhe fizesse mal.

Até que um dia a andorinha resolveu que iria embora. Não se sabe ao certo o motivo, se foi fraqueza ou força o que a fez se distanciar da cachoeira. O que a fez voar para o último lugar em que veria tanta água junta, e tantas almas e corações marcados pelo sussurro onipresente delas. A andorinha seguiu para onde a água era escassa e tão mesquinha quanto ela, e se dirigiu para o lugar onde as areias são mais numerosas que as esperanças. Voou em direção ao deserto, obstinada ainda que um tantinho triste por se afastar da segurança dolorida em que vivia.

Voou, passou por rios e fontes, e os odiou por terem em si, ressonantes, algum vestígio da cachoeira-mãe. Passou por bandos de animais que seguiam o canto silencioso da cachoeira, viu plantas exuberantes e coloridas ao longo do caminho, e as odiou por elas terem em suas folhas as reproduções, ainda que pequenas, daquela bela e incessante voz.

Até que a andorinha chegou ao deserto. Procurou nas areias amarelas e marrons, procurou em todas as pedras e no céu azul infinito, apurou os ouvidos e finalmente não mais ouviu o sussurrar das águas.

Parou para descansar, com seu bico seco e penas ralas, e pela primeira vez na vida ela inflou o peito e soltou um trinado estridente de alegria. Não havia mais a quem invejar! Ela sabia, sabia que esse dia chegaria, quando ela estaria livre da presença que instigava sua inveja.


Mas andorinhas não vivem de sol. No primeiro dia , animada, contente e incansável, ela voou pelos ares secos, quentes e cortantes do deserto. Admirava o sol e o agradecia por eliminar os sussurros de sua vida.

No segundo dia ela voou mais baixo e ficou por algum tempo na sombra das pedras, tentando ignorar a secura de seu bico e as penas que fragilizadas, agora caíam.

No terceiro dia ela fingiu que era normal sua voz desaparecer e a sua pequena traquéia arder.

No quarto dia ela não conseguia mais voar.

No quinto dia ela quis voltar para perto da cachoeira.

No sexto dia ela percebeu que a inveja que ela sentira da cachoeira era algum tipo distorcido de amor.

No sétimo dia ela soltou uma pequena lágrima, ouviu nela o fluir agora saudoso das águas, e morreu.






Seu pequeno corpo foi rapidamente coberto pelas areias quentes do deserto.

Ela não marcou almas nem corações, e não houve quem chorasse por ela.



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Texto velho, porém propício. Ainda gosto dele. A repetição da palavra "cachoeira" é proposital. Queria saber usar aquarelas pra poder colocar no papel as imagens que vêm à minha cabeça quando o leio. Quem (dentre os cinco que lêem isso aqui) souber e não tiver nada melhor pra fazer, pode me dar esse presente.

2 comentários:

Anônimo disse...

ah gostei...:)
vou passear sempre por aqui...

Marcus disse...

Pode esquecer. Esse treco de passar imagens pro papel não é comigo. Eu não nasci pra isso =/